Criar menos
“Vamos viver uma transformação onde vamos ver as pessoas, os indivíduos monetizando a sua existência”
Ouvi essa frase perplexa. Ela foi dita por algum “guru” de marketing digital em um videocast em parceria com uma página que sigo sobre tendências e métricas de redes sociais. Não gosto de ler comentários online, mas abri os comentários desse vídeo porque queria ver as pessoas denunciando o absurdo que era aquela fala. Mas, para minha surpresa, todos e todas concordavam com o que foi dito. O “guru” dizia que, como “todo mundo é influente e gera valor para seu ecossistema ao seu redor”, nossa vida inteira pode ser monetizada.
A imagem criada no início dos anos 2010 sobre plataformas digitais democráticas, onde todos teriam as mesmas oportunidades de comunicarem, se projetarem e criarem conexões, aparentemente, só mudou a roupagem. Se antes acreditávamos em redes sociais que dariam voz a todas, sem levar em conta as relações de poder pré-estabelecidas socialmente, agora acredita-se que todas terão acesso a grandes quantias de dinheiro, independente das hierarquias sociais tradicionais.
Para além de ilusório, o pensamento é insustentável. Se todas formos criadoras de conteúdo, quem serão as consumidoras? É claro que podemos ser ambas em alguma medida, mas economicamente falando, não é preciso fazer muitas contas para entender que esse cenário é simplesmente impossível dentro do capitalismo. A premissa do capitalismo é o acúmulo de capital de poucas (aquelas que detêm os meios de produção — e não, não inclui aquele seu primo empreendedor ou gurus do marketing digital) e a escassez financeira de muitas, que trocam seu tempo por salários mínimos. O sistema econômico onde todas têm acesso às mesmas oportunidades econômicas tem outro nome e vivemos longe disso.
A ideia de que é possível monetizar a vida de todas as pessoas é extremamente neoliberal e parte do pressuposto de que você pode ficar rica, basta querer. Essa ideia meritocrática alimenta, também, a ilusão de que todas que trabalham com conteúdo digital estão ricos e que a fama e o dinheiro estão acessíveis a todas. No entanto, a lista de criadores mais influentes do país, por exemplo, passa longe de formar um quadro diverso que represente a totalidade brasileira. Como em outros fenômenos e instituições, é visível que não há espaço para todas e os espaços são, na maioria das vezes, ocupados por classes sociais e grupos étnicos que sempre dominaram.
A possibilidade da monetização da sua vida na palma da sua mão, no entanto, não é uma criação desse tal guru do marketing digital. A própria Meta, dona do Facebook e Instagram, escolheu o mote “Tá na sua mão” para a primeira campanha de massa no Brasil, deixando claro que o uso de suas plataformas muda vidas, basta querer. E, claro, muita gente compra essa ideia. Ou busca ser comprada.
Os “sites” que costumávamos usar para socializar, como Twitter, viraram plataformas que priorizam conteúdos virais em uma timeline onde você não vê mais suas amigas e amigos, e sim um conteúdo cuidadosamente escolhido por uma IA para você. O jornalista Kyle Chayka falou sobre isso na New Yorker. “As redes sociais como a gente conhecia, um lugar para consumir posts de nossos amigos humanos e postar de volta, parece ter acabado”
“Lembra de se divertir online? Significava tropecar em um website que você nunca imaginava que existia, receber um meme que você não viu regurgitar uma dúzia de vezes e talvez até jogar algum jogo no seu navegador” (tradução livre)
Vivemos em redes que já foram sociais, mas hoje convocam todas a serem criadoras e consumirem conteúdo de outros criadoras, dando pouco ou quase nenhum espaço para as interações orgânicas e genuínas do início dos anos 2010.
Discordo do tal “guru” do videocast. Não acho que vamos e nem devemos monetizar nossa existência. Quanto mais tempo tivermos sem a mediação de uma tela, criando menos dados para big techs e indo na contramão da plataformização de todas nossas relações, mais espaço teremos para, de fato, criar conexões com outros seres.